«Deste mundo e do outro»,
um segundo volume
As «Crónicas de José Saramago no Jornal do Fundão», publicadas entre Agosto de 1971 e Outubro de 1972, foram anunciadas na primeira página desse número 1283. «Para os menos familiarizados com a vida literária» prometia-se a alegria das palavras de um escritor descrito, então, como «afirmação de uma personalidade invulgar».
Não sabemos como se deu o encontro entre António Paulouro e José Saramago (finalmente decidido a empreender na sua arte da escrita) que proporcionou esta colaboração. Sobejamente reconhecido é o dedo ponteiro do director do periódico de província, principalmente depois do episódio de fecho da redacção pela censura: inteligentemente, pela arte, pela cultura, «alargar a seara» — como se diz a certa altura na notícia de um colóquio organizado pelos 26 anos do JF. Basta notar o elenco de 0escritores e críticos literários que se juntou para celebrar a ocasião em 1972: Jorge Motta, Eugénio de Melo e Castro, Vítor Silva Tavares e outros, com Isabel da Nóbrega, Manuel da Fonseca e José Saramago como cabeças de cartaz. Por essa altura já Saramago era da casa. É o que se sente na nota à crónica «O crime da pistola», que não sabemos se publicada por engano: «Foi bom ter estado aí consigo. Fiquei a conhecê-lo melhor, conversámos sobre coisas importantes. Não se pôde dizer tudo, mas valeu a pena. E, olhe, comunique aí ao Director do Jornal que quando quiser, é só dizer. Lá iremos. E obrigado a todos.»
Onde terá ido com António Paulouro, isso já não nos diz respeito. Certamente cúmplices «a remar contra ventos e marés», como o recorda Saramago em entrevista ao JF vinte anos depois dessa sua ida ao Fundão. Mas com o JF, sabemos que Saramago foi além. Exercícios, por vezes excêntricos, da sua rédea solta para as palavras que o jornal o convidava a libertar. Recolhe alguns deles, que reúne com textos d´«A Capital», para o seu segundo livro de crónicas, «A Bagagem do Viajante», publicado pela primeira vez em 1973, pela Futura (e depois pela Caminho, em 1986, 1988, 1997, 1998, 1997, 2000, 2010, e pela Porto Editora em 2018 e 2022).
Quase poderíamos considerar a presente obra um digno e devido segundo volume integral das crónicas «Deste mundo e do outro», sem selecções. A transcrição foi feita dos originais publicados nos quarenta e três números do semanário. Corrigimos gralhas detectadas, que, embora mínimas, não maculando a celeridade de um periódico, manchariam desnecessariamente a crónica em livro. Ao transpôr os textos que publicou no JF para livro, José Saramago editou, corrigiu, limpou. A opção nesta colectânea foi respeitar o original publicado. Se há novidade neste volume, é a possibilidade que se oferece ao leitor em notar a evolução das crónicas, mantendo o que o escritor alterou ou simplesmente deixou de fora da sua bagagem de viajante. São exemplo da sua revisão a eliminação das notas, como a supracitada, que recuperamos; ganhando assim uma visita inusitada à mesa de Saramago no ofício de editor de si mesmo.
Efectivamente, esta edição comemorativa do centenário do nascimento de José Saramago acaba por falar mais do «Jornal do Fundão» do que do próprio escritor. Sabemos estes textos especiais, porque foram produzidos para o JF, prestigiando-se o autor a si próprio e ao periódico, e prestigiando os seus leitores, pela forma elegante, clássica e invulgar, claro!, de falar de tudo quando (não) se podia. Em 1991, antes de se afamar com o Prémio Pessoa (1995) ou com o Prémio Nobel (1998), Saramago era já um «acontecimento cultural». Sem alegria, que dera lugar ao pessimismo cultural, sem nunca abandonar a sua guerra pela língua-mátria. E, já em 1991, dizia Saramago: «Mas não discutimos a democracia. Pois eu digo: discutamo-la, meus senhores, discutamo-la a todas as horas, discutamo-la em todos os foros, porque, se não o fizermos a tempo, se não descobrirmos a maneira de a reinventar, sim, de a re-inventar, não será só a democracia que se perderá, também se perderá a esperança de ver um dia respeitados neste infeliz planeta os direitos humanos.» nota 1
Ler o Saramago no «Jornal do Fundão» é lembrar não só o seu legado literário, mas auscultar o homem que nos pedia para reinventar a nossa perspectiva — e esse existe já forte, convicto e belo nas crónicas em que ensaiava a sua visão. Esta reunião de escritos não precisaria da efeméride para ser publicada. A relevância da actividade editorial do «Jornal do Fundão» transborda do momento: como não recuperar, facsimilar, reunir, reconhecer, e voltar a comunicar, contributos literários que ultrapassaram as semanas em que se inscreveram passageiros, em edições clássicas, cheias de gratidão por sermos um património cultural rico que ainda não se esgotou? O dever da memória pede que ela nunca deixe de ser um direito universal.
Lia Nunes, Joana Morão, Rui Pelejão
Editores
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autoria José Saramago • prefácios Carlos Reis, Nuno Francisco, Paulo Fernandes • ilustração da capa João Vaz de Carvalho • grafismo e paginação José Espadinha • digitalização e transcrição Daniel Gomes • edição Joana Morão, Lia Nunes, Rui Pelejão
1.ª edição Novembro 2022 • colecção Colectâneas, 1 • isbn 978-989-53692-3-2
Capa mole com sobrecapa • 130 p. • 180 x 200 mm • 500 exemplares
PVP: € 18,00 (IVA incluído) • PORTES GRÁTIS
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